Em tese, são personagens metonímicas. São
combatentes que lutam pela libertação de Angola do domínio português. Suas
características e experiências individuais revelam-se como a visão de mundo, as
ambições, os movimentos e os “medos” do próprio povo angolano.
Nas palavras da estudiosa da Universidade
Federal do Espírito Santo , Cibele Verrangia Correa da Silva, “A literatura que deseja pensar a formação de
uma identidade nacional tem como protagonista de seus textos a população comum,
sofrida, excluída da ordem e do progresso social, que sobrevive no anonimato e
na marginalidade (...) É através das diversas personagens da obra, que de forma
alegórica representam a população angolana, que vamos descobrindo o universo de
miséria e exclusão (...), num contexto de guerras, pobreza, fome, miséria,
violência e indignação.”
Para cada um deles, optamos por trechos
originais em que talvez possam ser melhor lidos os traços de personalidades
individuais. Lembrando sempre que o ideal é ler a obra ao completo.
SEM MEDO
comandante dos guerrilheiros
Sem
Medo, guerrilheiro de Henda. Antes chamava-se Esfinge, ninguém sabia porquê.
Quando foi promovido a Chefe de Seção, os guerrilheiros deram-lhe o nome de Sem
Medo, 7 por ter resistido sozinho a um grupo inimigo que atacara um posto
avançado, o que deu tempo a que a Base fosse evacuada sem perdas. Uma das
muitas operações em que rira do inimigo, sobre ele lançando balas, gracejos e
insultos. Teoria sentia que o Comandante também tinha um segredo. Como cada um
dos outros. E era esse segredo de cada um que os fazia combater, frequentemente
por razões longínquas das afirmadas. Porquê Sem Medo abandonara o curso de
Economia, em 1964, para entrar na guerrilha? (Mayombe - Capítulo I A Missão)
—
Tu és um sentimental, Sem Medo! – disse o Comissário, alterado.– Não acredito
que tivesses sequer coragem de mandar fuzilar um traidor.
Sem
Medo apertou as mãos, cujos nós se tornaram brancos. Os lábios tremeram. Falou
baixinho, dominando-se a custo:
—
Fica sabendo, camarada Comissário, que eu já executei um traidor. Não só tomei
a decisão, sozinho, como o executei, sozinho. E não foi a tiro, pois o inimigo
cercava o sítio onde estávamos. Foi à punhalada! Já espetaste o punhal na
barriga de alguém, Comissário? Já sentiste o punhal enterrar-se na barriga de
alguém? Poderia ter evitado fazê-lo, mas todos evitavam, não houve voluntários,
não tive coragem, sim, não tive coragem, de mandar um camarada executá- lo,
escolhi-me a mim próprio como voluntário, para dar o exemplo. (Mayombe
- Capítulo
I A Missão)
—
Penso que é como a religião – disse Sem Medo. – Há uns que necessitam dela [da
guerrilha]. Há uns que precisam crer na generosidade abstrata da humanidade
abstrata, para poderem prosseguir um caminho duro como é o caminho
revolucionário. Considero que ou são fracos ou são espíritos jovens, que ainda
não viram verdadeiramente a vida. Os fracos abandonam só porque o seu ideal cai
por terra, ao verem um dirigente enganar um militante. Os outros temperam-se,
tornando-se mais relativos, menos exigentes. Ou então mantêm a fé acesa. Estes
morrem felizes embora talvez inúteis. Mas há homens que não precisam de ter uma
fé para suportarem os sacrifícios; são aqueles que, racionalmente, em perfeita
independência, escolheram esse caminho, sabendo bem que o objetivo só será
atingido em metade, mas que isso já significa um progresso imenso. É evidente
que estes têm também um ideal, todos o têm, mas nestes o ideal não é abstrato
nem irreal. Eu sei, por exemplo, que todos temos bem no fundo de nós um lado
egoísta que pretendemos esconder. Assim é o homem, pelo menos o homem atual.
Para que serviram séculos ou milénios de economia individual, senão para
construir homens egoístas? Negá-lo é fugir à verdade dura, mas real. Enfim, sei
que o homem atual é egoísta. Por isso, é necessário mostrar-lhe sempre que o
pouco conquistado não chega e que se deve prosseguir. Isso impedir-me-á de
continuar? Porquê? Se eu sei isso, a frio, e mesmo assim me decido a lutar, se
pretendo ajudar esses pequenos egoístas contra os grandes egoístas que tudo
açambarcaram, então não vejo porquê haveria de desistir quando outros
continuam. Só pararei, e aí racionalmente, quando vir que a minha ação é
inútil, que é gratuita, isto é, se a Revolução for desviada dos seus objetivos
fundamentais. (Capítulo
II – A Base).
COMISSÁRIO
POLÍTICO (JOÃO)
Guerrilheiro mais próximo do comandante
Sem Medo. Narrador do Epílogo.
(...),
alto e magro como Teoria(...) Porquê o Comissário abandonara Caxito, o pai
velho e pobre camponês arruinado pelo roubo das terras de café, e viera? Talvez
o Comissário tivesse uma razão mais evidente que os outros, sim (...). (Mayombe
- Capítulo
I A Missão)
—
Mas o aviso do Comissário é sério – continuou Sem Medo. – Quem vier fazer
tribalismo contra o povo de Cabinda será fuzilado. Fuzilado! Não estamos a
brincar. (Mayombe - Capítulo I A Missão)
A
voz de Sem Medo era cada vez mais fraca e o Comissário precisava quase encostar
o ouvido à boca dele para perceber.
—
A Ondina grama-te. Tenta reconquistá-la. São feitos um para o outro.
—
Não fales. Não fales, é pior. Dói muito?
—
Suporta-se. João apertava a mão do Comandante.
—
Peço-te perdão, Sem Medo. Não te compreendi, fui um imbecil. E quis igualar o
inigualável.
Sem
Medo sacudiu a cabeça.
—
Coragem gratuita!... Só... – O Comissário não respondeu.
Passados
momentos, Sem Medo apertou a mão do outro.
—
João.
—
Que é, Comandante?
—
O mecânico, lembras-te? Que apanhámos...
—
Sim.
—
Está em Dolisie... Veio para nós...
—
Vou vê-lo. Não fales agora.
—
Não faz mal... Olha! A classe operária adere à luta... Já vencemos...
—
Sim, Sem Medo. Mas não fales, por favor.
O
Comandante obedeceu. Apertava só a mão do Comissário. (Mayombe
- Capítulo V – A Amoreira)
TEORIA (professor da Base)
Narrador
em primeira pessoa no Capítulo I
Eu,
O Narrador, Sou Teoria.
Nasci
na Gabela, na terra do café. Da terra recebi a cor escura de café, vinda da
mãe, misturada ao branco defunto do meu pai, comerciante português. Trago em
mim o inconciliável e é este o meu motor. Num Universo de sim ou não, branco ou
negro, eu represento o talvez. Talvez é não, para quem quer ouvir sim e
significa sim para quem espera ouvir não. A culpa será minha se os homens
exigem a pureza e recusam as combinações? Sou eu que devo tornar-me em sim ou
em não? Ou são os homens que devem aceitar o talvez? Face a este problema
capital, as pessoas dividem-se aos meus olhos em dois grupos: os maniqueístas e
os outros. É bom esclarecer que raros são os outros, o Mundo é geralmente
maniqueísta. (Mayombe - Capítulo I A Missão)
MILAGRE (O homem da bazuka)
Segundo narrador no Capítulo I.
Eu,
o Narrador, Sou Milagre.
Nasci
em Quibaxe, região kimbundo, como o Comissário e o Chefe de Operações, que são
dali próximo. Bazukeiro, gosto de ver os camiões carregados de tropa serem
travados pelo meu tiro certeiro. Penso que na vida não pode haver maior prazer.
A minha terra é rica em café, mas o meu pai sempre foi um pobre camponês. E eu
só fiz a Primeira Classe, o resto aprendi aqui, na Revolução. Era miado na
altura de 1961. Mas lembro-me ainda das cenas de crianças atiradas contra as
árvores, de homens enterrados até ao pescoço, cabeça de fora, e o trator
passando, cortando as cabeças com a lâmina feita para abrir terra, para dar
riqueza aos homens. Com que prazer destruí há bocado o buldozer! Era parecido
com aquele que arrancou a cabeça do meu pai. O buldozer não tem culpa, depende
de quem o guia, é como a arma que se empunha. Mas eu não posso deixar de odiar
os tratores, desculpem-me.
Eu,
o Narrador, Sou Milagre, o Homem da Bazuka.
MUNDO NOVO
Um combatente que, para
alguns críticos, representa o comportamento de uma certa elite intelectual. Estudou
na Europa. Narrador no Capítulo II
Mundo
Novo era de Luanda, de origem kimbundo, mas os estudos ou talvez a permanência
na Europa tinham-no libertado do tribalismo. Mantinha-se isolado, limpando a
arma à luz da fogueira.(...)
Mundo Novo, que tinha estudado na Europa,
por vezes ajudava Teoria. (Mayombe - Capítulo
I A Missão)
Foram
acordados pelas primeiras vozes que se libertavam do espaço limitado da
sanzala, para se irem combinar ao orvalho que avivava o verde das folhas.
Sacudiram o torpor dos membros e do corpo doído pelas raízes, sobre as quais se
deitaram. Avançaram na noite para o caminho. Emboscaram-se ao lado dele. Cada
cão que ladrava trazia-lhos a impressão de ladrões esperando a vítima. No
entanto, eles esperavam um homem para lhe entregar o seu dinheiro. Estranha
situação que leva o que dá a esconder-se, pensou Mundo Novo. Só o colonialismo
poderia provocar tal aberração. (Mayombe - Capítulo
I A Missão)
Eu,
O Narrador, Sou Mundo Novo.
Assistimos
neste momento a qualquer coisa de novo na Base: o Comissário ousa afrontar o
Comandante.
Para
que o progresso se faça, é necessário que um elemento crie o seu contrário, o
qual entrará em contradição com ele para o negar. Sem Medo, de certa maneira,
criou o Comissário, formando-o. Mas eis que este o ultrapassa em grau de
consciência. Surge logicamente uma luta entre eles, luta que se traduz por
posições práticas antagónicas. Até agora, o Comissário limitava-se a seguir o
Comandante, a imitá-lo: mesmo nos gestos, no estilo de combater, na indiferença
aparente com que enfrenta o inimigo. Hoje opôs-se publicamente ao Comandante,
levantou a voz para o criticar. Sem Medo, pasmado pela rebeldia do seu pupilo,
abandonou a casa de Comando, foi passear na noite.
O
Comandante não passa, no fundo, dum diletante pequeno-burguês, com rasgos
anarquistas. Formado na escola marxista, guardou da sua classe de origem uma
boa dose de anticomunismo, o qual se revela pela recusa da igualdade
proletária. Não é de bom grado que aceita a democracia que deve reinar entre
combatentes e, por vezes, tem crises agudas e súbitas de tirania irracional.
Defensor verbal do direito à revolta, adepto da contestação permanente, abusa
da autoridade logo que a contestação se faz contra ele. O caso de Vewê pôs a nu
toda a sua mentalidade de ditador. Este flagrante caso de abuso do poder levou
o Comissário, que tem uma formação ideológica bem mais clara, a tomar posição a
favor da linha de massas.
Esta
atitude faz-me pensar que a relação de forças no Comando vai mudar. Como diz o
Chefe de Operações, o desprezo do Comandante pela opinião dos outros membros do
Comando tem levado a erros graves, situação agravada pelo fato de o Comissário
aprovar 68 sempre Sem Medo. Mas agora talvez vejamos a desejada união entre o Comissário
e o Chefe de Operações fazer-se contra o Comandante, defensor do niilismo
pequeno-burguês. Não há que lamentar divisões entre os responsáveis: elas são
uma necessidade histórica. (Mayombe - Capítulo II – A Base)
MUATIÂNVUA
Um dos combatentes
compreendido como destribalizado. Narrador
no Capítulo II
Eu,
O Narrador, Sou Muatiânvua.
Meu
pai era um trabalhador bailundo da Diamang, minha mãe uma kimbando do Songo.
O
meu pai morreu tuberculoso com o trabalho das minas, um ano depois de eu
nascer. Nasci na Lunda, no centro do diamante. O meu pai cavou com a picareta a
terra virgem, carregou vagões de terra, que ia ser separada para dela se
libertarem os diamantes. Morreu num hospital da Companhia, tuberculoso. O meu
pai pegou com as mãos rudes milhares de escudos 81 de diamantes. A nós não deixou
um só, nem sequer o salário de um mês. O diamante entroulhe no peito,
chupou-lhe a força, chupou, até que ele morreu.
O
brilho do diamante são as lágrimas dos trabalhadores da Companhia. A dureza do
diamante é ilusão: não é mais que gotas de suor esmagadas pelas toneladas de
terra que o cobrem.
Nasci
no meio de diamantes, sem os ver. Talvez porque nasci no meio de diamantes,
ainda jovem senti atração pelas gotas do mar imenso, aquelas gotas-diamante que
chocam contra o casco dos navios e saltam para o ar, aos milhares, com o brilho
leitoso das lágrimas escondidas.
O
mar foi por mim percorrido durante anos, de norte para sul, até à Namíbia, onde
o deserto vem misturar-se com a areia da praia, até ao Gabão e ao Ghana, e ao
Senegal, onde o verde das praias vai amarelecendo, até de novo se confundir com
elas na Mauritânia, juntando a África do Norte à África Austral, no amarelo das
suas praias. Marinheiro do Atlântico, e mesmo do Índico eu fui. Cheguei até à
Arábia, e de novo encontrei as praias amarelas de Moçâmedes e Benguela, onde
cresci. Praias de Benguela, praias da Mauritânia, praias da Arábia, não são as
amarelas praias de todo o Mundo?
Em
todos os portos tive uma mulher, em cada porto uma maka. Até que, um dia,
estava eu nos Camarões, ouvi na rádio o ataque às prisões, no 4 de Fevereiro. O
meu barco voltava para o sul e não cheguei a Angola. Fiquei em Matadi, ex-congo
Belga. Lumumba tinha morrido, a ferida sangrava ainda, a ferida só ficou sarada
quando o 4 de Fevereiro estalou.
Onde
eu nasci, havia homens de todas as línguas vivendo nas casas comuns e
miseráveis da Companhia. Onde eu cresci, no Bairro Benfica, em Benguela, havia
homens de todas as línguas, sofrendo as mesmas amarguras. O primeiro bando a
que pertenci tinha mesmo meninos brancos, e tinha miúdos nascidos de pai
umbundo, tchokue, kimbundo, fiote, kuanhama.
As
mulheres que eu amei eram de todas as tribos, desde as Reguibat do Marrocos às
Zulu da África do Sul. Todas eram belas e sabiam fazer amor, melhor umas que
outras, é certo. Qual a diferença entre a mulher que esconde a face com um véu
ou a que o deforma com escarificações?
Querem
hoje que eu seja tribalista!
De
que tribo?, pergunto eu. De que tribo, se eu sou de todas as tribos, não só de
Angola, como de África? Não falo eu o swahili, não aprendi eu o haussa com um
nigeriano? Qual é a minha língua, eu, que não dizia uma frase sem empregar
palavras de línguas diferentes? E agora, que utilizo para falar com os
camaradas, para deles ser compreendido? O português. A que tribo angolana
pertence a língua portuguesa?
Eu
sou o que é posto de lado, porque não seguiu o sangue da mãe kimbando ou o
sangue do pai umbando. Também Sem Medo, também Teoria, também o Comissário, e
tantos outros mais.
[...]
Eu,
Muatiânvua, de nome de rei, eu que escolhi a minha rota no meio dos caminhos do
Mundo, eu, ladrão, marinheiro, contrabandista, guerrilheiro, sempre à margem de
tudo (mas não é a praia uma margem?), eu não preciso de me apoiar numa tribo
para sentir a minha força. A minha força vem da terra que chupou a força de
outros homens, a minha força vem do esforço de puxar cabos e dar à manivela e
de dar murros na mesa duma taberna situada algures no Mundo, à margem da rota
dos grandes transatlânticos que passam, indiferentes, sem nada compreenderem do
que é o brilho-diamante da areia duma praia.
(Mayombe - Capítulo II – A Base)
LUTAMOS
Outro combatente
compreendido como destribalizado. Narrador no Capítulo V
Lutamos
já passara uma vez em direção ao rio e regressara para a Base. Voltou a passar
para o rio, observou um pouco o grupo, e acabou por sentar-se ao lado de Mundo
Novo.
—
Vai para a escola!
—
Oh! Tenho trabalho – disse Lutamos.
—
Que tens a fazer?
—
Lavar roupa...
Mundo
Novo sorriu. Lutamos era habitual nas fugas à escola, especialmente quando o
Comissário não estava presente. Já tinha sido castigado por não estudar, mas
não se modificava.
—
Tens de te convencer que precisas de estudar. Como serás útil depois da luta?
Mal sabes ler... onde vais trabalhar?
—
Fico no exército – disse Lutamos.
—
E julgas que para ficar no exército não tens de estudar? Como vais aprender
artilharia ou tática militar ou blindados? Precisas de Matemática, de Física...
—
Ora! Eu não quero ser oficial.
—
E quem vai ser oficial, então? Esses que se formam no exército tuga, sem
formação política, que um dia tentarão dar um golpe de Estado? É isso que
queres? Que depois da independência haja golpes de Estado todos os anos, como
nos outros países africanos? Precisamos de ter um exército bem politizado, com
quadros saídos da luta de libertação. Como vamos fazer, se os guerrilheiros não
querem estudar para serem quadros?
Lutamos
encolheu os ombros. Contemplou o grupo de jovens que cambalhotavam por terra,
suando, o suor agarrado à lama do Mayombe, e o Comandante, de tronco nu,
cambalhotando também, levantando-se para em seguida rolar pelo solo, misturando
explicações a encorajamentos e gritos.
—
Camarada Mundo Novo, há muitos que estudam. Não é um que não quer estudar que
vai estragar tudo. Eu nasci na mata, gosto é de caçar, de andar de um lado para
o outro, fazer a guerra. Mas não gosto nada [de] estudar. Já aguentei, aprendi
a ler e a escrever. Sei mesmo fazer contas de multiplicar! Para mim já chega. O
Comissário mobilizou-me, o ano passado estudei mesmo. Mas agora já chega, o
Comissário já não consegue mobilizar-me mais. E o que disse é verdade, tem
razão. Mas as milícias populares vão impedir os golpes de Estado, o povo em
armas...
—
E quem vai instruir o povo? Somos nós. Quem vai enquadrar as milícias? Tem de
ser um exército bem treinado. Para isso, é preciso quadros bem formados.
—
E o que diz o camarada Comissário. Todos os que têm muita política na cabeça
falam assim. Mas eu não tenho política na cabeça, sou só guerrilheiro. Quando a
independência vier, se não me quiserem no exército, volto para aqui, viro
caçador no Mayombe. Eu não quero ser muita coisa. Há aí uns que querem ser
diretores, chefes de não sei quê, comandantes... Esses estudam. Eu não quero
ser chefe.
Mundo
Novo deu por terminada a limpeza da arma. Começou a montá-la cuidadosamente.
Lutamos observava a operação, a sua pépéchá entre os joelhos.
—
Há camaradas que estudam só para subirem, isso é verdade. Mas não podes dizer
que são todos. Há outros que querem verdadeiramente ser úteis, ou que querem
aprender pelo prazer de aprender.
—
Tchá! – disse Lutamos. – Não acredito. Todos querem é subir ou viver melhor ou
mandar. — Nem todos, nem todos. É certo
que uma pessoa que se aperfeiçoa está a pensar no seu futuro pessoal também,
está a calcular que assim poderá viver melhor. Mas há aqueles que só pensam
nisso e os outros, que pensam mais no bem do povo.
—
Diz um aqui na Base, um que seja assim...
—
Pode-se encontrar.
—
Diz um!
—
Não sei. Não os conheço bem, cheguei há pouco. Mas penso que haverá, tenho de
pensar que haverá...
Sem
Medo interrompera os exercícios para um curto descanso. Tinha ouvido as últimas
frases. Sentando-se perto deles, perguntou:
—
Tens de pensar que haverá, Mundo Novo? Tens de pensar?
Mundo
Novo cofiou a barba fina. Hesitou instantes.
—
Sim, tenho de pensar.
—
Como os crentes que sentem que têm de crer em deus? Porque têm medo de deixar
de crer, de perder o amparo dessa crença que lhes dá um significado à vida, não
é?
—
Não é bem isso.
—
É quase isso. Praticamente é o mesmo. Quando alguém afirma que tem de acreditar
no desinteresse de alguns homens, porque isso corresponde à ideia que ele tem
da humanidade, mesmo que os fatos mostrem o contrário, então que é isso? Tem-se
uma ideia preconcebida do género humano, uma ideia otimista. Por isso,
recusa-se toda a realidade que contrarie essa ideia. É o esquematismo na
política. E um aspecto religioso, uma concepção religiosa da política.
Infelizmente, é a maneira de pensar de muitos revolucionários.
—
Mas, camarada Comandante, não achas que há camaradas que estudam desinteressadamente?
—
Crês que haja alguma coisa que se faça, desinteressadamente na vida?
Lutamos
pensou que encontrava apoio no Comandante. Sentiu coragem para proferir:
—
É por isso que não estou de acordo com o Comissário, que nos obriga a ir à
escola.
—
Tu, Lutamos, és um burro! – disse Sem Medo. – Quem não quer estudar é um burro
e, por isso, o Comissário tem razão. (Mayombe - Capítulo II – A Base)
CHEFE DE
OPERAÇÕES
Narrador no Capítulo IV
Eu,
O Narrador, Sou O Chefe De Operações.
Não
durmo, nesta noite que não acaba. Sem Medo, a meu lado, também não dorme. Mas
não posso falar com ele. Nunca pudemos conversar. Ele é um intelectual, eu um
filho de camponês.
Nos
Dembos, os homens viviam miseráveis no meio da riqueza. O café estava em toda a
parte, abraçado às árvores. Mas roubavam-nos nos preços, o suor era pago por
uns tostões sem valor. E as roças dos colonos cresciam, cresciam, atirando as
nossas pequenas lavras para as terras mais pobres.
Por
isso houve Março de 61.
Eu
era criança, mas participei nos ataques às roças dos colonos. Avançava com
pedras, no meio de homens com catanas e alguns, raros, com canhangulos. Não
podíamos olhar para trás: os kimbundos diziam que, se o fizéssemos,
morreríamos. As balas dos brancos eram água, diziam eles. Depois da
independência renasceriam os que tinham caído em combate. Tudo mentira. Hoje
vejo que era tudo mentira.
Massacrámos
os colonos, destruímos as roças, mesmo o dinheiro queimámos, proclamámos
território livre. Éramos livres. Os brancos durante séculos massacraram-nos,
porque não massacrá-los? Mas uma guerra não se faz só com ódio e o exército
colonial recuperou o território, o território livre voltou a ser território
ocupado.
Vim
para o Congo e no MPLA aprendi a fazer a guerra, uma guerra com organização.
Também aprendi a ler. Aprendi sobretudo que o que fizemos em 61, cortando
cabeças de brancos, mestiços, assimilados e umbundus, era talvez justo nesse
momento. Mas hoje não pode servir de orgulho para ninguém. Era uma necessidade
histórica, como diz o Comissário Político. Percebo o sentido das palavras, ele
tem razão, nisso ele tem razão.
Só
não tem razão em estar do lado do Comandante, que é kikongo. Foram os kikongos
que vieram mobilizar-nos, que trouxeram as palavras de ordem do Congo de
avançar à toa, sem organização. Os kikongos queriam reconstituir o antigo reino
do Congo. Mas esqueceram que os Dembos e Nambuangongo sempre foram
independentes do Congo. Pelo menos, a partir duma certa altura. Isso
disseram-me os velhos dos Dembos e isso diz a história do MPLA. Porquê o Reino
do Congo e não o Ndongo e não os Dembos?
Perdida
a guerra de 62, os kikongos infiltraram-se no MPLA. O Sem Medo não. Ele é
kikongo, mas nasceu em Luanda. O Sem Medo é um intelectual, é isso que complica
as coisas.
Ele
não dorme.
Não
pode dormir. A sua Base está ocupada pelo inimigo. Foi ele que a construiu, foi
ele que a impôs ao André, que a queria no exterior. É a sua Base. Por isso
sofre. É uma derrota para ele. Sem Medo é um intelectual, o intelectual não
pode suportar que o seu filho morra. Nós estamos habituados. Os nossos filhos
morreram sob as bombas, sob a metralha, sob o chicote do capataz. Estamos
habituados a ver os nossos filhos morrer. Ele não. A Base era o seu filho,
criou-a contra todos. Contra nós mesmos, que queremos é voltar aos Dembos e a
Nambuangongo, onde há verdadeiramente guerra popular. Ele acredita que a luta
aqui é possível, que ela pode crescer. É o seu filho, está bem, é preciso
compreender.
O
Comissário diz que, se avançarmos a luta em Cabinda, as outras regiões estarão
aliviadas, porque o inimigo terá de dividir forças. É verdade. Por isso, luto
aqui. Mas não por Cabinda, que não me interessa. Luto aqui para que a minha
região tenha menos inimigos concentrados nela e assim possa ser livre.
Mas
Sem Medo é um homem. Quando combate, tem o mesmo ódio ao inimigo que eu. As
razões são diferentes, mas os gestos são os mesmos. Por isso o sigo no combate.
O mal é ser um intelectual, é esse o mal: nunca poderá compreender o povo. Os
seus filhos ou irmãos não morreram na guerra. Não, ele não pode compreender.
Ele não dorme. Gostava de lhe explicar isto. Mas não sei como dizer. E ele não
compreenderia. (Mayombe - Capítulo IV – A Surucucu)
O CHEFE DO
DEPÓSITO
Narrador no Capítulo III
Eu,
O Narrador, Sou O Chefe Do Depósito.
É
a segunda noite que não vou dormir, por causa dos presos. Se adormecer, eles
fugirão.
Fui
combatente na Primeira Região, servi de guia aos grupos que do Congo entravam
em Angola ou saíam para o Congo. Fui para o interior de novo com o Esquadrão
Kamy e, depois do fracasso, consegui voltar. Doente, fiquei a trabalhar no
Depósito. Até hoje. A saúde não me permite estar permanentemente na guerra e
tenho pena. Mas tomar conta do material de guerra também é fazer a revolução.
Lá
em Quibaxe, eu já era homem e casado, quando começou a guerra. Camponês sem
terra, trabalhava na roça dum colono. Entrei na guerra, sabendo que tudo o que
fizesse para acabar com a exploração era correto. E tudo fiz. Mas não foi tão
rápido como se imaginava. Os traidores impediram a luta de crescer. Traidores
de todos os lados. É mentira dizer que são os kikongos ou os kimbundos ou os
umbandos ou os mulatos que são os traidores. Eu vi-os de todas as línguas e
cores. Eu vi os nossos próprios patrícios que tinham roças quererem aproveitar
para aumentar as raças. E alguns colaboraram com a Pide.
Por
isso, Sem Medo tem razão. Por isso não durmo, para que haja justiça. Ingratidão
cometeu um crime contra o Povo e quem o ajudou a fugir cometeu também. É justo
serem castigados.
Já
sou velho, já vi muita coisa. As palavras têm valor, o povo acredita nas
palavras como deuses. Mas aprendi que as palavras só valem quando correspondem
ao que se faz na prática.
Sem
Medo fala como age. É um homem sincero. Que me interessa a língua que falaram
os seus antepassados?
Ele
está sozinho aqui, em Dolisie. Rodeado de inimigos ou, pelo menos, de pessoas
que não o compreendem. Os guerrilheiros apreciam-no como Comandante, mas
desconfiam dele porque é kikongo. Eu aprecio-o e não desconfio dele.
Por
isso fico acordado. (Mayombe - Capítulo III – Ondina)
ANDRÉ
Combatente Kikongo. Responsável pela
alimentação do grupo. Narrador no Capítulo III
Eu,
O Narrador, Sou André.
Eis-me
no comboio, a caminho de Brazzaville, a caminho do desterro, sentado à frente
dum homem que não responde senão por monossílabos, grave como deve ser um
membro da Direção. A pasta vai ao lado dele, fechada à chave, cheia de
documentos que me hão-de comprometer.
Basta
ver a sua cara para saber que o processo me será desfavorável.
E
onde estão os meus companheiros que me não defenderam? Fugiram todos, nenhum
ousou abrir a boca a meu favor. Todos aqueles que me lisonjeavam, que andavam à
minha volta esperando uma migalha, fugiram com medo dos kimbundos. Não há
dúvida que são os kimbundos que fazem a lei. Não conseguiram eles libertar o
Ingratidão? Quero ver agora como Sem Medo resolverá o problema. Ele conseguiu o
que queria. Sempre desejou o meu lugar, por isso mexeu os cordelinhos, levantou
os kikongos contra mim, até veio da Base quando teve conhecimento do que se
passava, só para estar presente para poder enterrar-me mais.
[...]
Porque
quem se pode enganar sobre o complô que foi preparado contra mim? Não tinham
fatos em que se agarrar, o Sem Medo e o seu grupo. Planearam então o golpe da
Ondina. Pago pela minha imprudência, pela minha credulidade. Desejava Ondina?
Sim, há muito tempo. As suas coxas eram uma tentação. Os seus olhos que
prometiam, que se não baixavam. Ao vê-la na estrada, não tive nenhum
pensamento. Foi no bar que o desejo veio. Começava a escurecer. Porque não? Ela
olhava-me a desafiar. (...)
[...]
E
este cara-de-pau não percebeu nada. Quem acreditará no complô? Ninguém. Nem
vale a pena denunciá-lo, ninguém acreditará. Pensarão que é desculpa.
De
qualquer modo, estou-me marimbando. O pior momento já passou. Em Brazzavile não
me liquidarão. E sempre tenho os meus apoios. Não destes tipos que nem ousaram
defender-me, não da plebe. Tenho apoios bem colocados, que têm influência.
Farei a minha autocrítica para desarmar os adversários e isso dará
possibilidades aos meus amigos para advogarem a minha causa.
Lenine
teve razão ao inventar a autocrítica. Que boa coisa que é a autocrítica! Há uns
burros que sempre a recusam. Ainda não descobriram o furo. Quando estiveres em
maus lençóis, faz a tua autocrítica. Todos os ataques pararão imediatamente. É
a teoria da ação e da reação: uma força que faz haja uma reação para se
exercer. Se tu eliminas a reação, que no caso seria a tua defesa, que acontece?
A ação deixará de se exercer. É simples como água. Faço logo de começo a minha
autocrítica, aí os ataques serão só para a forma, já terão perdido toda a força
da raiva. Quem pode atacar um homem que se não defende? Considerarão que sou um
bom militante, pois autocritiquei-me. E não me fazem baixar de posto, mandam-me
para outro sítio.
Só
os burros são teimosos, se mantêm no erro. Porque eu cometi erros, para quê
negar? Deveria ter desconfiado da Ondina e tê-la levado para um sítio bem
escondido, onde não pudessem arranjar testemunhas. Falar-se-ia mas não haveria
provas. E ela acabaria por aceitar, já estava ao rubro: o plano cairia, mas ao
menos ela sempre teria uma parte. Outro erro foi o de confiar nalguns
militantes. A plebe é toda igual, não merece confiança, o responsável para ela
só vale enquanto lhe pode trazer benefícios. Por isso o meu pai, que era soba,
gastava tanto dinheiro a distribuir pelos seus homens. Ele bem sabia que se não
o fizesse perderia a força. O meu erro foi esquecer esses ensinamentos
elementares. (Mayombe - Capítulo III – Ondina)
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